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Dossiê: A cerveja brasileira é democrática ou reflete as desigualdades estruturais do país?

Dossiê: A cerveja brasileira é democrática ou reflete as desigualdades estruturais do país?

Em uma iniciativa para ampliar o acesso ao ensino e tornar o setor cervejeiro mais inclusivo no Brasil, o Science of Beer adotou uma ação afirmativa em seus cursos. A escola segmentada tem ofertado bolsas de estudos parciais ou integrais – com até dez vagas por turma – para negros, indígenas, pessoas com deficiência e outros grupos em situação de vulnerabilidade econômica. Uma excelente iniciativa que faz despertar a seguinte questão: embora essencialmente popular, a cerveja brasileira é, de fato, democrática?

Trata-se de uma pergunta que se torna ainda mais emblemática quando se observa especificamente o segmento de artesanais, que tem a diversidade de sabores e a inventividade como alguns de seus pilares. Características, entretanto, que não necessariamente se refletem em participação, preços e oportunidades.

Não há, também, como descolar o setor cervejeiro da sociedade brasileira, com traços óbvios de preconceito e claras barreiras de acesso. Essa democracia mais propalada do que praticada – e o debate sobre os seus problemas – ficou mais clara e exposta nos últimos meses e semanas com a pandemia do coronavírus. A doença, afinal, além dos óbvios problemas sanitários e econômicos provocados, ampliou e escancarou a desigualdade do país.

A pandemia, por exemplo, tem se alastrado rapidamente entre os povos indígenas, que já vinham sofrendo com políticas públicas que ameaçavam sua sobrevivência. E, como se dá no restante da sociedade, o seu maior impacto ocorre sobre pessoas mais velhas e atinge guardiões de importantes culturas. Além disso, as comunidades vivem unidas em grandes malocas, aumentando o cenário de vulnerabilidade.

No início de junho, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apontou 178 mortes pelo coronavírus em comunidades indígenas, número que se ampliou nas últimas semanas, ainda mais pela presença de garimpeiros na floresta, o que tem dizimado a população. E provocou a criação de uma petição para expulsar essa ameaça (acesse este link).

“O coronavírus expõe as vulnerabilidades aos quais os povos indígenas estão submetidos, o territorial e os de realização dos direitos mais básicos: o direito à saúde e educação diferenciadas, a assistência para um povo que está fora do seu território. Esse somatório coloca os povos indígenas em uma vulnerabilidade que talvez seja a principal entre todos os grupos da sociedade brasileira”, alerta Tiago Moreira, antropólogo e pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA).

Nos grandes centros urbanos e nas periferias brasileiras, o cenário também é desolador. Em São Paulo, os 20 bairros com mais mortes por coronavírus estão nas regiões periféricas – a Brasilândia, na zona norte, é a mais atingida. Isso com uma doença que teve seus primeiros casos entre os mais ricos, que inicialmente se infectaram em viagens ao exterior.

É o resultado de anos de esquecimento da periferia pelo poder público, o que se soma com a dificuldade de cumprimento do isolamento social e o discurso contraditório adotado por autoridades. Pode, portanto, ser enxergado como um genocídio, algo que se assemelha ao que tem se praticado com jovens negros e periféricos pelas mãos da polícia mesmo durante a pandemia.

Foi assim com João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, morto durante uma ação policial em São Gonçalo (RJ), quando estava dentro da sua residência que foi alvo de mais de 70 tiros. Ou com Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, que desapareceu na zona sul de São Paulo e foi encontrado depois com dois disparos na cabeça e muitas marcas de agressão espalhadas pelo corpo.

A situação levou a Coalizão Negra por Direitos a lançar um manifesto em que condena o racismo, defende a democracia e denuncia o genocídio da população negra e as ameaças do governo Bolsonaro ao estado democrático de direito, podendo ser acessado no link https://comracismonaohademocracia.org.br/.

Cerveja democrática?
Essa desigualdade vista na sociedade e escancarada pelo coronavírus se reflete, por sua vez, no mercado cervejeiro? Taiga Cazarine, jornalista, sommelière de cervejas e diretora de comunicação da Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva), é taxativa ao responder: não, a cerveja brasileira não é democrática.

Seja pelo sabor ou pelo preço, segundo ela, o setor de artesanais afasta uma parcela importante da sociedade. “98% das pessoas que consomem cerveja compram o produto das grandes indústrias. Como você vai atingir esse público com sabores e aromas diferentes, alguns requintados, e preços competitivos como o vinho, que é um setor tão consolidado?”, questiona.

E essa difícil realidade sempre esteve exposta ao mercado, conforme aponta Sara de Jesus Araujo, acadêmica de Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá, beer sommelière pela Doemens & ESCM e criadora da página @negracervejassommeliere. Para ela, o problema social, o preconceito racial e o diferente acesso às oportunidades expostas pela crise do coronavírus nunca estiveram escondidos. E só não foram vistos por quem optou por não observá-los.

“A sociedade brasileira sempre se esquivou da sua realidade, qual seja, que o racismo é estrutural e estruturante das relações raciais e sociais. Essas questões têm sido aventadas pelo movimento negro há muitos anos, porém, a camada hétero-branca-cis-normativa, a qual detém o poder do discurso, não se observa e nem discute esse fenômeno, pois implicaria olhar para si”, comenta.

Como resultado óbvio, Sara aponta ser raro a presença dos negros em espaços cervejeiros. “Até os vemos, no entanto, estão servindo as mesas, limpando os espaços ou fazendo a segurança do lugar”, afirma ela, relatando cenas de preconceito. “Eu, por exemplo, sempre que vou a espaços cervejeiro, faço o teste do pescoço e procuro pessoas iguais a mim, pessoas com a pele escura, e não as encontro. Na realidade, encontro olhares insistentes como quem pergunta: o que você está fazendo aqui?”.

A sommelière também observa que os negros são maioria na população brasileira, mas não aparecem em propagandas de cerveja ou nos principais cargos diretivos das marcas. “Pessoas negras não gostam de cervejas? É evidente que gostam, mas elas não são convidadas a estarem nesses espaços”, diz ela, para depois acrescentar.

“Olhem as propagandas relacionadas à cerveja e vejam as cores das pessoas que estão ali consumindo e curtindo. Na sua maioria, são pessoas brancas”, observa Sara, também fazendo um questionamento aos brancos. “Por que não tem pessoas negras nos cargos de decisão no meio cervejeiro, onde estão os mestres-cervejeiros, os donos de cervejarias, as pessoas negras nos cargos de decisão?”.

Democracia e profissionalização
Taiga Cazarine, por sua vez, aponta que a necessidade de profissionalização do mercado cervejeiro vai muito além da exigência de contar com pessoas que entendam do produto. Passa, especialmente, pela necessidade de adotar ações que estimulem a diversidade e a democratização de oportunidades.

“Quando a gente fala em profissionalizar o setor, tem a ver com entender gestão do negócio, levantar bandeiras e contratar a diversidade, preparar os trabalhadores, trabalhar a marca, a produção da cerveja, comunicar o consumo responsável, levantar a bandeira do consumo local”, detalha a diretora da Abracerva.

Já Nadhine França, colunista do Guia, sommelière, membro da Confraria Maria Bonita e coordenadora do Instituto da Cerveja no Pernambuco, aponta que o segmento só poderá ter um crescimento saudável caso haja inovação “inclusiva”, algo que demanda visões diferentes, advindas de realidades distintas.

“Há uma necessidade de o setor entender que não vai crescer se continuar fazendo produto de nicho. É preciso compor suas equipes de maneira mais diversa para estimular inovação. Para isso precisamos também profissionalizar essas pessoas. Esse é o melhor caminho para consolidar a cerveja artesanal de maneira democrática: com representatividade”, salienta Nadhine.

Democracia e educação
Nesse sentido, a iniciativa do Science of Beer pode fomentar a tão necessária diversidade. Fundadora e CEO da instituição, Amanda Reintebach explica que a inspiração para fornecer as bolsas veio da sua própria infância, marcada por dificuldades, mas transformada pela educação. Assim, ela espera contribuir para que sua história se repita com outras pessoas.

“Lembro de uma vez que fui descalça para escola e, como meu trajeto era longo e pelo sítio, embaixo da minha carteira ficava o barro. Isso foi motivo para muito bullying, porém me deu força para mudar minha realidade. Naquela época eu já dizia que queria ser uma cientista. Estava claro para mim que a forma de mudar a minha vida era através da educação”, relata.

Ao fornecer as bolsas, o Science of Beer espera contribuir para eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantir a igualdade de oportunidades e tratamento, compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos e de gênero.

Amanda reforça que a participação de “minorias” em eventos, cursos e altos cargos é rara, tornando o mercado cervejeiro elitizado. E a sua instituição busca, portanto, viabilizar uma pequena parcela da necessária reparação histórica. “Temos uma preocupação muito grande em tornar o mercado cervejeiro mais democrático e inclusivo. Afinal, se a cerveja é para todos, por que a profissão e o estudo da cerveja ainda segregam tanto?”, questiona.

O investimento em educação também é visto por Sara como a única possibilidade de viabilizar a diversidade no setor, seja entre frequentadores, expositores e premiados em festivais, seja entre os donos de cervejarias.

“Para que essa situação se altere, para que possamos ver pessoas de todos os jeitos e uma ampla diversidade nesse espaço, há que se investir em educação principalmente antirracista e contratar a diversidade”, diz a sommelière. “Pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+ precisam estar incluídas nesse espaço, não tokenizadas, mas, sim, em paridade.”

Já Nadhine França comenta que o crescimento do setor de cervejas artesanais se deu por alguns fatores, como o aumento do poder de consumo da classe média e alterações na percepção sobre a gastronomia. Mas ele só irá se consolidar com o maior aceso à educação cervejeira.

“A ascensão da mulher no mercado de trabalho e o aumento da renda da chamada classe média, permitindo viagens internacionais e acesso a cervejas importadas, aliada à movimentos gastronômicos de gourmetização e valorização do produtor local, criaram um terreno para que a indústria da cerveja artesanal pudesse construir seu espaço, mas a educação cervejeira cria em cada pessoa uma ferramenta para que essa estrutura seja perene. Uma iniciativa como essa permite que qualquer pessoa possa ser essa ferramenta rodando essa engrenagem”, complementa Nadhine.

A ação afirmativa do Science of Beer é válida para os cursos de Sommelier de Cerveja; Tecnologia em Processos Cervejeiros; Beer Talk; Yeast Freaks; Gestão, Análise e Avaliação Sensorial de Cerveja; Malt Talk; Hops On Top; além de aulas online.

Os candidatos podem ser contemplados com bolsas de 30%, 50% ou 100% do valor do curso, levando em consideração os dados de um questionário socioeconômico e a análise de uma comissão. Clique aqui para acessar o edital.

Conteúdo rastreado pelo Radar Bebendo com Amigos. Originalmente postado por /Guia da Cerveja

Nélio Castro

Meu nome é Nélio Castro, sou um entusiasta e estudioso de cervejas.
No final de 2015 iniciei o canal Bebendo com Amigos no Youtube com análise e degustação de cervejas artesanais nacionais e importadas, com a intenção de estudar cada vez mais sobre cerveja e compartilhar na internet esse conhecimento. Clique na minha foto ou nome de perfil para conhecer o canal no YouTube!

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