As mudanças na legislação que normatiza a produção de cerveja no Brasil, apresentadas na última terça-feira, a partir da assinatura de decreto pelo presidente Jair Bolsonaro e que atualizou texto de 2009, provocaram dúvidas, questionamentos e algum alvoroço entre os envolvidos no setor, especialmente pela falta de referência ao uso de cereais não maltados no documento.
Além disso, o decreto liberou o uso de produtos de origem animal, como mel e leite, na composição da cerveja, algo antes que a levava a ser classificada como bebida mista. E também indicou a desburocratização do registro de novas receitas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Para explicar o impacto e as dúvidas envolvendo esse importante decreto sobre as cervejas, reunimos nessa matéria a opinião de diferentes representantes do setor, como o Mapa, a Associação Brasileira da Cerveja Artesanal (Abracerva), a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Indústria Brasileira de Bebidas e alguns juristas. Confira.
A nota do Mapa
Criticado pela falta de menção no decreto aos limites de uso de cereais não maltados – o texto anterior apontava a necessidade de que as cervejas contivessem ao menos 55% de malte, ou seja, apenas 45% de cereais não maltados -, o Mapa se manifestou através de nota esclarecendo não ter interesse em alterar os limites de malte.
“De acordo com Carlos Müller, coordenador-geral de Vinhos e Bebidas do ministério, neste momento, a única mudança nas normas é a permissão da inclusão nas cervejas de matérias-primas de origem animal, como leite, chocolate com leite e mel. Ele esclareceu que o novo decreto não altera o limite mínimo de utilização de malte de cevada nas cervejas. Não há qualquer mudança em relação aos chamados adjuntos cervejeiros, que são as matérias-primas que substituem parcialmente o malte ou extrato de malte na elaboração da bebida”, afirma o ministério.
De acordo com o Mapa, a limitação continua em vigor por causa do item 2.1.5. da Instrução Normativa n°54/2001, mesmo que não esteja no texto, o que provocou insegurança jurídica.
“Antes da publicação do novo decreto, a cerveja tinha seu padrão disposto no Brasil em duas normas: o Decreto 6.871/2009 e a Instrução Normativa n° 54/2001. Agora, o novo decreto passa a conter somente a definição da cerveja, enquanto todas as disposições específicas de classificação e rotulagem passam a vigorar somente na Instrução Normativa n°54/2001. Foram corrigidas algumas disposições conflitantes nas duas normas anteriores, tornando o arcabouço normativo mais compreensível à sociedade”, defende o Mapa.
A análise da Abracerva
A Abracerva, através do presidente Carlo Giovanni Lapolli, avalia que as críticas ao decreto são fruto do desconhecimento, apontando que não há interesse do Mapa em alterar os limites de malte utilizados na composição da bebida.
“Isso é fruto de desconhecimento (a desconfiança) de como foi elaborada essa norma, que está desde 2013 em discussão. O objetivo sempre foi tirar, enxugar as
coisas do decreto, deixar ele mais simples. Não faz o mínimo sentido ser contra, são as pessoas que não conhecem o trâmite. Foi até realizada uma audiência pública e será mantido o mesmo percentual de cereais não maltados. É um grande desconhecimento sobre a legislação. As pessoas podem ficar bem tranquilas porque vai ajudar a melhorar e fazer com que tenha mais criatividade, além de poder registrar a cerveja de forma correta, com mel, com lactose, com barril de madeira, frutas brasileiras. E vai manter a como está a questão dos cereais não maltados. Então, não tem nenhuma preocupação com relação a isso, é só desconhecimento”, diz.
Lapolli também crê que o decreto estimulará a aplicação de receitas mais criativas na concepção das cervejas, o que favorecerá o crescimento do setor de artesanais.
“Antes, os rótulos que traziam esses itens eram classificados como bebidas mistas. A partir de agora, entram na categoria de cerveja. Essa é uma mudança fundamental e de grande avanço para o universo das artesanais, pois permite a criação de produtos ainda mais diferenciados”, afirma.
A posição da Frente Parlamentar
A liberdade criativa a partir da liberação do uso de produtos de origem animal na receita dos rótulos também é exaltado como fator positivo por Fausto Pinato, deputado federal e presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Indústria Brasileira de Bebidas, em entrevista ao Guia.
“Vejo o Decreto Nº 9.902/2019 como algo extremamente positivo para os produtores de cervejas artesanais, que aguardavam essa decisão desde 2014 e agora poderão criar livremente utilizando outros ingredientes, trazendo a inovação e qualidade que o seu público exige. Toda a cadeia produtiva do setor cervejeiro foi beneficiada e isso significa, além de produtos diferenciados, maior possibilidade de investimentos, que geram renda, empregos e, consequentemente, desenvolvimento. Ganha o produtor, o consumidor e o Estado”, afirma.
A avaliação dos juristas
Embora concordem que o novo decreto seja importante para o futuro da cerveja brasileira, os juristas consultados, da maneira geral, avaliam que ele deixa margem à interpretação de que o limite de 45% para o uso de adjuntos – como milho, por exemplo – não está mais em vigor. Seria necessário, assim, na avaliação deles, especialmente para acabar com a insegurança jurídica, a elaboração de uma nova regulamentação que dispusesse de forma clara e precisa sobre essa norma.
Advogado, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET) e sócio do escritório Kubaszwski Gama Advogados Associados, Clairton Kubaszwski Gama escreveu na terça em uma coluna sobre o tema (publicada pelo Guia da Cerveja). Ele reitera: o Decreto nº 6.871/2009 prevendo o limite de 45% para uso de adjuntos foi extinto. Portanto, com a adoção de um novo decreto, uma Instrução Normativa – como a de 2001 – não “pode desbordar dos limites estabelecidos pelos atos legais”.
“Primeiramente, quero registrar que entendo ser de extrema importância que haja essa estipulação de limite para o uso de adjuntos e que a postura do Mapa, em defender a vigência da regulamentação, é igualmente importante para o Padrão de Identidade e Qualidade da cerveja brasileira. Contudo, do ponto de vista jurídico, entendo que há margem para discussão e para defender que o limite de 45% para uso de adjuntos não está mais em vigor”, diz Clairton.
Para ele, a limitação do uso de adjuntos deixou de vigorar a partir do novo decreto.
“É que a padronização das cervejas no Brasil é obrigatória por força da Lei 8.918/1994, a qual é regulamentada pelo Decreto nº 6.871/2009. Este decreto
previa o limite de 45% para uso de adjuntos. Ocorre que a partir da última terça-feira, através do Decreto 9.902/2019, este limite foi revogado. E, no nosso sistema jurídico, um ato infralegal, como uma Instrução Normativa, por exemplo, não pode desbordar dos limites estabelecidos pelos atos legais (Leis Ordinários e Decretos, por exemplo). Então, se o Decreto não prevê mais o limite para adjuntos, ganha força o argumento de que a IN não pode continuar prevendo”, explica.
Por isso, Clairton enxerga insegurança jurídica a partir da assinatura do decreto, que só será sanada com uma nova regulamentação. “Enfim, entendo que o melhor para o setor cervejeiro, neste momento, seja a elaboração de uma nova regulamentação, dispondo de forma clara e precisa não apenas sobre este ponto, mas sobre todas as alterações realizadas pelo Decreto nº 9.902/2019. E que esta nova regulamentação seja feita com a participação dos representantes do setor e o mais breve possível, pois este cenário de dúvidas e posições, a princípio, divergentes serve apenas para gerar insegurança jurídica”, afirma.
A avaliação de Clairton é corroborada por Luiz André Marqueti Rodrigues, oficial de justiça avaliador federal, cervejeiro caseiro e medalhista de concursos da Bräu Akademie. Para ele, a hierarquia das normas jurídicas faz com que o novo decreto anule a legislação de 2009 que estabelecia o uso de cereais não maltados nas receitas das cervejas.
“Honestamente, não faz sentido algum o Mapa querer sustentar a vigência da Instrução Normativa 54 após a edição do novo decreto. Em primeiro lugar porque, em respeito à hierarquia das normas, essa Instrução Normativa não pode se sobrepor ao novo decreto que, a princípio, deixou de estabelecer os limites anteriormente fixados, muito embora relegue ao administrador a regulamentação posterior, que ainda não veio.
Em segundo lugar porque, no Direito, o que não é proibido, é permitido. Se a proibição deixou de existir no novo decreto, não é a norma infralegal anterior que vai regular isso. Isso é elementar”, diz.
Para ele, será preciso uma nova legislação para evitar a insegurança jurídica provocada pelo novo decreto, “Penso que o Mapa deverá suprir essa lacuna em breve, para acalmar os ânimos e também para não deixar um vácuo legislativo duvidoso. Vamos aguardar”, defende.
Outro jurista a reforçar a tese de que as resoluções anteriores deixaram de estar vigentes a partir do novo decreto é o advogado e cervejeiro Rodrigo Prado Marques. Para ele, inclusive, a falta de determinação pode trazer um clima de insegurança jurídica prejudicial ao setor.
“Há uma referência sobre o texto de 2001, mas isso me parece equivocado por uma questão jurídica. Embora o Mapa tenha vindo a público falar sobre ele, o de 2001 não é um decreto, mas uma Instrução Normativa. E, como há uma hierarquia de normas, se o decreto que o validava – que era o de 2009 – foi revogado, o outro deixa de existir. Tacitamente ele estaria revogado também. Ou seja, a instrução de 2001 não tem mais qualquer validade porque o novo decreto não faz qualquer previsão aos 45%. E isso pode ser bastante prejudicial”, comenta Rodrigo.
Na avaliação do especialista, é preciso que o Mapa encaminhe uma nova resolução que torne mais clara a definição. “Então, o que seria preciso é regulamentar esse novo decreto. Porque ficou essa questão, ficou meio capenga. Enquanto não tiver uma nova orientação falando especificamente sobre os 45%, sobre os aditivos, esse decreto está manco. Por enquanto, na minha opinião, o que vale é só o decreto, que não especifica nada”, conclui.
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