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Puro Malte ou Puro Marketing?

Puro Malte ou Puro Marketing?

Precisamos Falar Sobre o Malte: Parte 01

Venhamos e convenhamos, o lúpulo é o verdadeiro queridinho da maior parte dos bebedores aficionados por cerveja artesanal. É comum que a maioria da taplist de qualquer casa de cerveja artesanal seja composta por IPAs dos mais diversos tipos. Ou melhor, American IPAs, mais focadas em um perfil lupulado extremo, de pouco equilíbrio. O sucesso estrondoso nas New Englands reside inteiramente na potência e na quantidade absurda da famosa flor verde. Afinal, quem já ouviu falar em maltheads? É, meus amigos, a verdade é que temos deixado o malte de lado. Por isso mesmo que precisamos falar sobre o malte. Esse vai ser o primeiro de uma série de textos sobre, de certo modo, esse underdog da cerveja.

Tanto desprezo e falta de informação é terreno fértil para publicitários, marketeiros e empresários que, como diria Felipão, são ou “burros ou mal intencionados”. E o maior mito de todos reside em uma expressão muito bonita, a famosa “puro malte”. O surgimento de cervejas “puro malte” tem sido muito comum no mercado tanto de cervejas de massa quanto de cervejas artesanais. O mais interessante é que a confusão e a falta de instrução do termo atinge todo nível de bebedor, desde o iniciante mais casual até alguns bebedores mais experientes. Afinal, o que é “puro malte”? E o mais importante: isso faz de uma cerveja melhor ou pior?

Para início de conversa, precisamos compreender o que é o processo de malteação. De forma extremamente simplificada, é o ato de transformar, ou modificar, determinado grão pelo início de sua germinação e posterior interrupção do processo com a secagem e possível torra. O objetivo deste processo é facilitar a posterior extração dos açucares fermentáveis para a produção de cerveja. Calma, calma, vou parar a parte técnica por aqui antes que você fique entediado e decida abrir uma Devassa Puro Malte.

Perceba que eu fiz questão de frisar a palavra grão. Por quê? Porque, em tese, qualquer grão pode virar malte! Isso mesmo, qualquer grão! Inclusive aquele que é tido como o representante do lado negro da cerveja, o grande malfeitor, o destruir de lares, o maldito milho! Logo, por lógica, uma cerveja pode conter malte de milho e ser, tcham-ram, puro fucking malte! Inclusive, uma cerveja feita de malte de milho pode ser uma ótima ideia para cerveja sem glúten. Afinal, o milho é realmente tão ruim assim para a cerveja? Quer dizer que sua presença vai retirar todo o delicioso gosto do malte de cevada? Calma, meu amigo, quem contou essa lorota para você? As grandes cervejarias como AB-Inbev e Kirin? Ou seja, as possíveis responsáveis por décadas de desinformação? As possíveis responsáveis por criar gerações inteiras com a ideia de que a cerveja deve ser estupidamente gelada? Olha só, a fonte já não me parece mais tão confiável…

Então vamos analisar um pouco da própria informação. Toda cerveja boa é necessariamente “puro malte”? Nop. A base de grãos de uma receita pode conter diversos grãos não maltados que não o milho. Por exemplo, vamos pegar um estilo bastante tradicional e histórico: Dry Stout. Sua receita, em tese, deve levar cevada não maltada para ajudar na sensação de secura necessária ao estilo. Logo, temos uma cerveja que não leva milho e, pasmem, não é “puro malte”. Quer mais? A Witbier tradicionalmente leva trigo não maltado. Meu Deus! Como aquela deliciosa cerveja belga com um nome tão bonito pode não ser “puro malte”? Pois é. Isso porque nem quero começar a falar na utilização de outros grãos muito comuns em diversos estilos, como o centeio e a aveia.

Mas daí podemos chegar a uma possível conclusão: o milho seria o único cereal não maltado prejudicial à cerveja? Para responder a esse questionamento, precisamos entender o motivo pelo qual se adiciona milho à cerveja. Não quero entrar em questões históricas, mas focar um pouco mais no sensorial. O milho vai agir como uma fonte de açucares fermentáveis para que a levedura possa produzir álcool e gás carbônico. Contudo, diferente de outros grãos, como a cevada, o milho não contribui com um aumento significativo de corpo e sabor no resultado final da cerveja. Ou seja, hopheads, o milho pode ser uma adição muito interessante na produção de uma IPA que deseje dar maior atenção ao sabor e amargor do lúpulo. Portanto, a conclusão aqui é óbvia. Importa muito mais como você usa determinado insumo do que a própria existência dele. É muito mais importante um processo de produção adequado, principalmente com o devido respeito à fermentação e à maturação, que a existência, ou não, de cereais não maltados na cerveja.

Agora ficou fácil! De nada adianta uma cerveja ser “puro malte” se ela for mal feita ou, pior, se for feita com intuitos meramente mercadológicos. Como assim “intuitos mercadológicos”? Afinal, por que você acha que as grandes cervejarias adicionam cereais não maltados às suas produções? O objetivo é justamente a tentativa de criar um produto com pouco sabor e mais neutro, fator este que facilita a disseminação e diminui a rejeição. Assim se vende muito mais! No fim das contas, a culpa não é do cereal não maltado, mas da forma e do objetivo com o qual ele foi utilizado. A culpa, meus amigos, é do produto final. Tanto na escolha dos insumos quanto no próprio processo de produção. Também é possível produzir uma cerveja com pouco sabor e com muitos defeitos usando apenas malte. E algumas cervejarias não cansam de nos provar isso. Duvido que seja perceptível, para a maioria das pessoas e em um teste cego, a diferença entre certas marcas que estampam orgulhosamente o selo de “puro malte”. E digo mais, duvido que se perceba uma diferença considerável entre elas e as que não detêm tão almejada alcunha.

É, meus amigos, publicitários são especialistas em trabalhar com a desinformação e o psicológico do consumidor. Não duvido que você tenha terminado de ler todo esse enorme texto, se é que você teve paciência de ler até o fim, e continue a gritar a plenos pulmões: “ainda acho que minha Proibida é melhor que aquela Skol”. Não vou dizer que você está errado. Afinal, gosto é que nem braço… ops… quis dizer que cada um tem seu paladar próprio e único. Meu objetivo não é fazer você deixar de beber determinada marca, mas garantir que você a beba com consciência e conhecimento, garantir que você pegue uma “puro malte” e saiba as implicações dessa pequena expressão. Tudo que eu quero é que você compreenda quando “puro malte” na verdade significa “puro marketing”.

Ps.: troque a palavra “milho” por “arroz” e o texto vai permanecer com o mesmo sentido.

Confira esse vídeo produzido pelo Canal Bebendo Com Amigos

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